6.1.08

Pequena História do Grande Terramoto (II): a história do Príncipe-Gato

Era uma vez um príncipe, filho de um rei poderosíssimo, que governava com mão-de-ferro um reino maior que a Europa do Atlântico aos Urais, que tinha o dom de transformar tudo aquilo em que tocava em ouro. Este feito ocorria quando o Sol brilhava com intensidade. Nessas ocasiões, o príncipe tinha que ter muito cuidado aonde colocava as mãos, pois qualquer descuido podia ser fatal. Foi assim que um dia transformou uma princesa que com ele conversava numa estátua de ouro. Por esta razão, o príncipe era uma pessoa muito infeliz. Mas tanto o rei como os súbditos consideravam o príncipe como alguém muito especial, até porque já não raras vezes lhes tinha resolvido uma série de problemas: sempre que o sol brilhava e havia alguma necessidade que o ouro pudesse resolver, aí estava o príncipe com as mãos na massa. À noite, o príncipe saia sorrateiramente do palácio e caminhava sobre os telhados. Tinha outros companheiros que já o esperavam e se sorriam ao vê-lo chegar. O príncipe, com olhos de gato, mirava-os enternecido. Então visitavam os lugares mais recônditos da sua cidade e das cidades vizinhas, desciam aonde os homens normalmente não vão, empoleiravam-se sobre os telhados olhando a Lua e as Estrelas, partilhavam a música e a poesia que só eles conheciam. Uma noite, alguém avistou sobre um dos telhados de uma casa fronteira ao palácio do rei 7 gatos pretos. Tal facto foi amplamente comentado e percebeu-se finalmente a origem de um mal que vinha assolando o reino já há muito tempo: a peste negra que nem todo o ouro disponibilizado pelo rei conseguia erradicar. Desde essa noite, o povo desse reino passou a perseguir e a matar, com uma violência inusitada, todos os gatos pretos que fossem avistados. Comentava-se que eram, sem dúvida, os tentáculos do Maligno porque quanto mais se matavam, maior parecia ser o seu número. Estavam por todo o lado, inclusivamente dentro das casas. Um édito real ordenou que fossem liquidados não só os gatos pretos, como também qualquer gato, porquanto potencialmente atentador do statu quo vigente. Com o correr dos tempos, o Sol foi perdendo o seu brilho. Aliás, agora eram muitos os dias de frio e de chuva, que, às vezes, se prolongavam por semanas inteiras. Por essa razão, o príncipe já não conseguia proporcionar ao seu pai todo o ouro de que ele necessitava para erradicar o grande mal que afectava o reino. Livre da maldição, o príncipe podia agora conversar com as princesas do seu reino, sem receio de as condenar a uma prisão atroz e perpétua. Mas o príncipe sentia-se cada vez mais infeliz. Ora, um dia, o príncipe recebeu a visita de uma águia que lhe disse que poderia reencontrar a felicidade se conseguisse quebrar o feitiço que a bruxa lhe tinha imposto: teria, para o efeito, que ser capaz de afirmar, sem receio, o seu amor por alguém. O coração do príncipe encheu-se de esperança, mas, rapidamente, uma lágrima de tristeza assomou ao seu rosto: mostrar o amor por alguém implicava apaixonar-se e assumir publicamente essa paixão. Ele bem se recordava do castigo que a bruxa lhe impusera: como não me amas, como não reconheces o meu amor, ficarás condenado a nunca conseguires ser feliz! O príncipe consultou então os astros, o Sol, a Lua e as Estrelas, mas também o Tempo e o Coração dos homens. Então, por acordo comum, o Sol se obscureceu e deu lugar às Trevas. E o príncipe-gato surgiu aos olhos de todos na varanda do palácio real. Com voz forte e potente, gritou: Sempre fui um Gato e um Homem, profundamente apaixonado pela Vida e é, com ela, e através dela, que quero viver! O Sol recomeçou a brilhar e o príncipe-gato tocou o Tempo e o Coração dos Homens. A maldição do feitiço tinha sido, finalmente, anulada. Desde esse dia, nunca mais se ouviu falar, nesse reino ou em qualquer outro da região, na peste negra e todos os gatos, assim como os outros animais, vivem num são convívio com os homens. O príncipe e a Vida, esses, vivem, desde essa época o seu romance de amor e, pelo que sei, ainda não deixaram de ser felizes.

3 comentários:

Hydrargirum disse...

Gostei deste conto!

Acho que tb eu trago um gato cá dentro!

Vamos ver o desfecho da minha Vida no meu Reino!

:)

Abraço!:)

Will disse...

Amar a vida é bom... desde que não afaste outros amores mais concretos, como o amar uma pessoa, senão corre-se o risco de viver uma vida fecunda em ideais vazios.

Kapitão Kaus disse...

Olá, Hydrargirum, obrigado pelo comentário. Acho que todos temos um gato dentro de nós, só que, às vezes, ele não se vê ou não é visível à luz do dia.

Will, concordo contigo. O ideal é amar a vida, e amá-la através do amor profundo por outra pessoa.

Abraço aos dois :)