31.3.08

Quanto vale um olhar

Hoje foi um dia consagrado a acompanhar um familiar na sua ida ao médico. Pela primeira vez dei-me conta que a vida nem sempre é aquilo que idealizamos e que a saúde e a alegria da juventude podem não durar para sempre. A certo momento, comecei a incomodar-me e a reparar nas pessoas que comigo se cruzavam. Nunca fui muito de olhar para o rosto dos transeuntes anónimos que me acompanham pelas ruas da grande cidade, mas hoje fi-lo. E dei conta que eu vivo numa cidade em que as pessoas parecem ter perdido a sua beleza. Para onde quer que olhasse só via solidão, dor, sofrimento e muito desespero. Ainda pensei que estivesse a reviver algum episódio de Anotação do Mal, de Jaime Rocha, mas não, as ruas da cidade que eu percorria eram mesmo as ruas da minha cidade. O que me salvou o dia foi a recordação de dois olhares que, num passado recente, se cruzaram comigo. Dois olhares de pessoas diferentes, mas nas quais eu senti o magnetismo de seres vivos e desejantes. Dois olhares expressivos, jovens, carregados de uma sede de viver e que me permitiram recuperar a emoção do paraíso perdido e dos lugares onde os pássaros azuis se confundem com a Liberdade e o Sonho. Dois olhares ligados ambos à passagem e à mudança, irreversível para todos, e para mim também. O primeiro ocorreu, faz agora uns 3 anos, numa das salas de embarque do aeroporto internacional de Barajas (Madrid), quando eu me preparava para partir rumo a uma grande capital europeia. Seriam umas 18h30. Eu estava sentado e o meu olhar cruzou-se, com uma liberdade desenfreada e com uma intensidade descomunal, com uma pessoa que fazia parte do pessoal de bordo de uma companhia aérea europeia, e que caminhava na minha direcção. Ainda hoje, recordo com saudade e ansiedade efervescente todas as promessas que os nossos olhares disseram um ao outro naquele breve espaço de segundos. O segundo ocorreu, faz agora 3 dias, num momento em que, parada na estação, a viagem estava prestes a reiniciar-se. Seriam umas 18h30. Eu estava sentado e o meu olhar foi atingido pelo olhar intenso e desejante de alguém que eu já vira, mas que eu já não poderia alcançar, pelo menos materialmente. Sorrimo-nos e comunicamos tudo o que poderia ser partilhado. O presente e, principalmente, o desejo intenso de um reencontro futuro. Em ambas as situações, para além do local, hora e momento simbólico, só poderei acrescentar que usava uma gravata colorida, a que mais gosto, e que levo sempre para todas as ocasiões especiais. Hoje, quando olhei os traseuntes que habitavam a mesma rua que eu na grande cidade, não estava a usar nenhuma gravata.

3 comentários:

João Roque disse...

Um olhar, por vezes vale por muitas palavras; oiço os meus amigos dizer que eu quando estva interessado ou me apetecia falar com alguém, lhe mandava um olhar fulminante; tenho consciência disso, embora não o faça propositadamente: "sai-me"... (falo no passado, porque agora só tenho olhares numa direcção.
O teu texto é muito rico, pois descreves, além da questão dos olhares, um mundo cinzento, pardacento com que as pessoas se mostram, e isso é triste; valham-nos, como bem dizes, os olhares...
Abraço.

Julieta disse...

Sorri no final deste post... tem algo de mim aqui...
Durante muito tempo frequentei assiduamente o hospital para visitar um familiar, e consigo perceber perfeitamente o que sentiste... mas sabes descobri também que se oferecer um sorriso, uma palavra, um carinho ou então somente ouvir essas pessoas faço com que o dia delas se torne mais colorido e descobram a esperança e alegria perdidas... e isso funciona em todos os sítios e com todas as pessoas... e em compesação recebe-se sempre a melhor das recompensas... a interior... por isso da próxima leva a gravata mais colorida, porque muitas dessas pessoas merecem.
Quanto ao olhar... bem... o olhar diz tudo... é tudo... e o silêncio de um olhar onde tudo é dito, sem qualquer necessidade de palavras é qualquer coisa de sublime!
... e é bem verdade, nada na vida é por acaso e não é por acaso que a vida é feita de pequenos e felizes acasos que só nos cabe a nós torna-los eternos...
Adorei o post e de conhecer um pouco mais do Kapitão com coração.

Beijinhos com carinho

paulo disse...

Amigo Kapitão, percebo perfeitamente a tua referência lá no FJ... Eu dou por mim a olhar muito para as pessoas, a imaginar o que estão a sentir e a pensar, a ler-lhes traços de personalidade. E a procurar quem eu já "perdi". Cheguei ao fim com lágrimas, mas devia ter chegado com um sorriso. Enfim, também eu te digo: o sol veio em força, aproveita-o em todos os sentidos :)


(p.s. este comentário não era para ser uma resposta ao que me deixaste, mas simplesmente não tive oportunidade de vir aqui antes e deu-se a coincidência)